Tudo o que é preciso saber?
Post convidado de João Boavida, antes publicado no Semanário As Beiras.
Vale a pena ler:
Título: Cultura - Tudo o que é preciso saber
Autor: Dietrich Schwanitz
Edição: Dom Quixote (2006)
"É um grosso livro, de perto de 700 páginas, tipo 10, “times”, formato para o grande, mancha densa, ou seja, um livro acima do habitual em tamanho e conteúdo, e que, apesar disso, e do título (há quem fuja mais à cultura que o gato à água fria), em quatro anos fez umas dez edições em Português, ou mais. É obra! Poderemos dizer mesmo que é obra de duas maneiras: pelo que é e pelas edições portuguesas em pouco tempo.
Mas o facto pode ter várias interpretações. Muitos portugueses, ao contrário do que se pensa e apesar dos muitos que dela fogem, estão ansiosos por cultura, e correm a consumi-la onde quer que a vêem ou lha anunciam. Outros, procurarão resolver, num único livro, tudo o que afinal interessa, lamentando o tempo gasto a aprender tanta inutilidade, e procurando assim não aprender mais coisas inúteis. Outros ainda, tendo gasto a juventude em assuntos mais práticos ou tarefas mais curtidas que a cultura, segundo pensam, vendo agora a falta que ela lhes faz, procuram recuperar, em 700 páginas de compêndio, o que importa saber para não fazer tristes figuras. Enfim, razões para um tal sucesso editorial não faltam.
É de facto um livro ao mesmo tempo sólido e acessível, e, já agora, que revela vasta cultura, o que não é coisa pouca. Mas que pouco ensinará aos que mais precisam, isto é, aos incultos, porque lhes faltará cultura para, daquela cultura, tirarem proveito cultural. Embora possa ser útil aos cultos, que de facto não precisam dele, ou que dela não necessitam tanto embora a utilizem mais, o que parece um contra-senso, mas neste caso nem é. Ou melhor, talvez não seja.
Contra-senso é o livro em si mesmo quando pretende fazer-nos saber tudo o que é preciso saber, uma vez que ninguém está habilitado a saber tudo o que é preciso saber, porque ninguém pode prever tudo o que venha a precisar de saber. Não só, como se sabe, porque não se pode saber tudo, como também porque não se pode saber o que não se sabe que não se sabe. Ora, se não se sabe o que de facto ignoramos, não só não sabemos o que não sabemos, como não temos nenhumas condições para saber o que nos falta. E, sendo assim, como saber de facto o que é preciso saber se não sabemos o que nos falta?
Uma das características da cultura é não apresentar limites prévios, nem características antecipadamente definidas como culturais, nem estatuto definitivamente estabelecido, nem caminho previamente percorrido. A cultura é, em boa medida, a consciência do que nos falta a partir do muito ou pouco que sabemos, e por muito que saibamos. Além disso, estabelecer tudo o que de facto é importante pressupõe uma arrogância que hoje perdeu muito do sentido que o eurocentrismo lhe dava e que o multiculturalismo lançou às urtigas, ou quase. Não é que a nossa cultura europeia não seja importante, e até é bom que a revalorizemos, tão envergonhados andamos dela. O que é, na verdade, uma vergonha.
Mas se tudo o que é preciso saber é aquilo que lá está, no livro, então tudo o que lá não está é como se não existisse. E se o que falta são culturas inteiras, como é o caso da cultura portuguesa, por exemplo, como poder ter a certeza do valor do que lá está e dizer-se que é tudo o que é preciso saber? Devemos perguntar: que significariam as culturas que lá estão, se as que lá faltam não tivessem existido? E que valor teriam as que lá estão se também lá estivessem as que lá não estão, possibilitando assim um quadro muito mais largo e uma diluição maior, dada a relatividade e a interacção das coisas?
Em suma, um sólido livro de cultura que se dissolve a si mesmo pela sobranceria cultural que se julgaria impossível de diluir. Sempre, todavia, com um tom jocoso, facto quase contraditório, embora curioso, e que, convenhamos, é habitual sinal de cultura. Que lá está também, temos que o reconhecer. Há coisas… digamos, muito contraditórias, por exemplo, a cultura, os modos como se manifesta e os que se presumem dela."
João Boavida
Posted by De Rerum Natura at 01:24
Labels: cultura, Livros
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